A tirar pela voz, aquele interlocutor de ocasião era novo, um jovem repórter interessado em colher dados a propósito dos impedimentos sociais de agora, diante da violência crescente e desenfreada.
Em outras palavras: o que não se pode mais fazer em conseqüência do medo, do pavor que a sociedade enfrenta? Pedi um tempo e o endereço eletrônico, como cabe fazer na contemporaneidade, em vinte minutos, prometi, hei de responder. E respondi!
Bastou uma reflexão curta sobre o ontem das coisas e o hoje do cotidiano, para encontrar as diferenças e nas vinte linhas das suas exigências: redigi o texto. Parece muito fácil a qualquer cinquentão fazer isso!
As lembranças de um Salvador que se foi, embalado nas toadas de todas as saudades, facilitam declarações assim!
Ora, não se pode mais andar no centro urbano, fazer compras na Rua Chile ou passear – simplesmente passear – na velha Av Sete, voltar pela Carlos Gomes e apreciar da Praça Castro Alves o mar batendo lá em baixo e se desmanchando em ondas da imaginação, enchendo ou vazando.
Não se pode mais sentar no Terreiro de Jesus e admirar o desfile das moças, indo e vindo das compras ou esperando a sessão de cinema no Liceu. De um lado, o da rua daMisericórdia, as meninas casadoiras, umas comprometidas já e outras não, livres e desimpedidas, e do outro as que da vida viviam, vendendo o corpo e os amores.
Metade cá e metade lá, como o imaginário da rapaziada, fantasiando vontades que eram desejos nem sempre realizados. Um sorvete na Gamboa ou um sanduíche na Padaria Confiança, na Praça da Sé, serviam para encerrar a tarde buliçosa. E haja sonhos!
O jeito é fugir de casa, correr para o campo ou se esconder na praia, estirar-se na rede ou sentar-se na espreguiçadeira e ao sabor da cerveja gelada ou do vinho à temperatura ambiente, fazer a opção entre um livro, um clássico da música e uma conversa a ser fiada em alpendre ventilado.
Até o Carnaval mudou, o corso acabou e as colombinas estão refugiadas nas grades de todos os medos, a lágrima do pierrô enxugou e não há mais arlequins saltitantes. Um ou outro bloco de rua se atreve em percorrer o centro, na sexta-feira gorda ou no sábado de Zé Pereira. Depois, recolhem-se!
No tempo do São João tornou-se impossível visitar os arrabaldes, passar nos largos e observar as quadrilhas matutas repetindo o dançar ritmado das cortes européias.
Muito pior se o penitente saudosista, mesmo de carro, desejar conferir as fogueiras de Santo Amaro e os fogos coloridos que enfeitavam os céus da cidade vindos do Clube Português, onde muitos não podiam entrar, mas podiam ver, das calçadas do Parque Amorim, a beleza espraiada nos ares, dando cor à paz.
As antigas carroças puxadas a cavalo, que traziam os noivos em noites assim, não circulam mais antecedendo o préstito e os pares estão desfeitos, separados para todo o sempre, pairam nas nuvens das recordações, como se fossem fantasmas de muitas lembranças. Sequer há retretas em palanquins de subúrbios!
As brincadeiras de meio de rua, o pega e o pega-soltou, o queimado e o garrafão estão proibidas às crianças.
Empinar papagaio e jogar uma pelada são atividades tangidas do imaginário infantil, mais do que ocupado com a Internet e os desenhos da televisão.
Ninguém sai de casa para apanhar manga, tirar oiti e recolher cajá ou a tamarindo caído do pé! O velocípede circula na sala dos apartamentos e de bicicleta não se vai mais ao colégio, tampouco a passeio nos entornos da moradia onde estava, recatada e reclusa, a musa da adolescência.
As alamedas do Campo Grande vivem um silêncio que assusta os antigos amantes. Nem o senhor bem cuidado, de carro importado, da marca Skoda, com a mão esquerda estirada pra fora da janela, a tirar a aliança da denúncia, teria mais coragem de cortejar a jovem de longos cabelos, lisos e negros!
Sou do tempo do ladrão de galinhas e do batedor de carteiras! Tenho saudades do tudo, das cadeiras no portão e das casas escancaradas, dos retornos em grupo pelas ruas do Salvador, de antigos saraus e dos aniversários domésticos, dos assustados e das festas de bairro. Sou assim!