segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

PASSOS


Não que eu desejasse a sua morte. Não, não, de jeito nenhum. Apenas queria que ela dormisse. Há mais de dez anos morando no Recanto Verde, tendo por vizinha de cima uma velhota insone, que passava as noites caminhando. Eu próprio, tendo um sono muito leve, aquele caminhar permanente e ritmado madrugada adentro, noite após noite, era um tormento para mim.

A altas horas acordo ouvindo passos. Estremeço. E, no silêncio da noite, me pergunto: prá onde será que ela vai? Que lugar ermo é esse que a velhota solitária busca de forma incessante, entre as quatro paredes do seu apartamento no Bloco 51?

Porque, quando começa a andar ela não pára mais. Como se buscasse algo esquecido no fundo de sua memória, ou de seus armários, segue de um lado para outro com passos firmes, determinados, mas que parecem nunca levar a lugar algum. E a madrugada se vai nesse caminhar sem fim, para mim e para ela.

Às vezes, tenho pena. Sei que ninguém tem culpa por não conseguir dormir. Mas o fato é que ela podia, ao menos, parar um pouco, olhar a paisagem da janela, ler, ligar a televisão. Sei lá... Ou podia ainda usar um chinelinho de flanela e não aquele de salto, tec, tec, tec a noite toda nos tacos do chão. E mais, num aceno de paz, ela podia ao menos mandar acarpetar o apartamento!

Mas não! Nunca fez nada disso. Por todas aquelas  noites, nesses mais de dez anos ela caminhou – e só. De dia, reina a mais absoluta quietude no seu apartamento. Nunca a vejo sair. Pouco sei sobre ela e nem me lembro mais como é seu rosto. Acho que se chamava Aurelina, mas conheço muito bem os seus passos noturnos que assombram minhas noites. Nada mais.

Mas agora, tudo está terminado. Há pouco, no fim da tarde, chegando do trabalho, dei com um pedaço de papel pregado na parede da escada. O enterro foi hoje às 5 da tarde. Não, por favor, não me interpretem mal. Eu jamais desejei que ela morresse. Sabia que ela era uma velhota de mais de 70, com saúde frágil, com certeza agravada pelas noites sem dormir. Mas nunca desejei a sua morte. Jamais. Queria apenas que ela dormisse.

E agora, quem vai dormir sou eu.

Dormir! Uma noite inteirinha só para mim, como não faço há 10 anos. Preparei tudo para essa ocasião tão especial. Um bom banho, lençol, pijama e agora estou pronto.

Apago a luz. E no mesmo segundo, antes mesmo que a escuridão me envolva por completo, ouço, com toda a nitidez e força, o som dos passos ritmados da velhota no andar de cima... 

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