segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

PELA JANELA.


Reparei pela primeira vez naquele apartamento enquanto esperava o sinal abrir bem em frente à entrada da Engomadeira, no Cabula. Pelas cortinas entreabertas, conseguia ver apenas uma parede, banhada pela luz indireta de um abajur. Mas nessa parede havia uma estante, que me chamou a atenção por sua beleza e solidez. Estava repleta de livros, com suas lombadas multicoloridas. Alguns eram encadernados, outros não. Muitos pareciam antigos. Mas o importante é que a estante não tinha enfeites, nem plantas, nada. Apenas livros.

Imediatamente, comecei a imaginar quem seria o morador daquele apartamento. Não sei por que, mas achei que os livros pertenciam a uma mulher. E fui além. Pensei numa professora de História ou Biologia, uma apaixonada por pesquisas assim como eu, alguém de mais de quarenta, talvez loira, de cabelos encaracolados, usando óculos de aro fino para leitura.

Imaginei uma mulher sensível, mas um pouco rabugenta, sempre implicando com a empregada por tirar do lugar os papéis da escrivaninha, e logo depois dizendo alguma coisa engraçada, para que ela a perdoasse. Alguém que vivesse sozinha – e feliz.

Mas o sinal abriu , e eu segui, deixando para trás minha amiga imaginária.

Desde então, sempre que passava por aquela sinaleira no Cabula, mesmo em velocidade, eu aproveitava para espiar. Só dava certo se estivesse escuro. Esse tipo de observação precisa da noite para acontecer. Quando a luz agreste do sol se dissolve com a noite, e surgem, através das janelas, as salas e os quartos com sua luminosidade artificial, só então, é possível observar, captar fragmentos, compor histórias, e penetrar um pouco na vida das pessoas, irmanando-se a elas, vencendo o isolamento das paredes.

Mas como eu sempre passava por ali ao cair da noite, podia observar à vontade. A cortina estava sempre entreaberta no mesmo ângulo, o abajur aceso, mas para mim, aquele apartamento era apenas isso. Uma parede, a estante e seus livros. Jamais consegui ver o resto da sala. Nunca vi além da janela.

Mas minha amiga professora de História ou Biologia continuou existindo por meses e meses na minha fértil imaginação, com uma clareza sobrenatural. Eu gostava dela, de sua solidão delicada, de seus fins de tarde à meia luz, na companhia dos seus livros. Porque, embora eu não a visse, sabia que estava ali.

Até que outro dia, passando por lá, tive um choque. E vi. Vi, por trás das janelas abertas, uma parede nua, onde restavam apenas as cicatrizes das prateleiras, única prova concreta de que tinham estado ali por vários anos. A estante já não existia. Tampouco os livros. Minha amiga imaginária se fora!

Nesse instante, uma buzina grasnou atrás de mim. O carro da frente andara e eu ali parado, atrapalhando o trânsito, me sentindo vazio, idiota e triste, sozinho na tarde fria que caía...



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